"Dramaturgia:
Propõe-se uma definição provisória do termo como:
modo de inventar, acessar e ativar os planos de composição (ou de consistência) da obrapor-vir.
Premissas:
a) Entendimento de dramaturgia como processo. (E não como fim, nem como “linha de sentido” que se revela retrospectivamente ao chegarmos no final de uma peça).
b) Entendimento da obra como força-vontade autônoma. É justamente por causa de sua autonomia que a obra permanece nebulosa para si mesma — até o momento em que agenciamentos autorais provoquem as primeiras e ainda vagas concretizações da obra. Ou seja, até o momento em que uma outra força-vontade (podemos chamá-la de “função-autor”) se resolva a acessá-la, a entrar em composição criativa com essa ainda nebulosa-obra. Esse acesso (que é também e já ativação) pode acontecer em ensaio, já com bailarinos ou atores, ou em delineamento ainda apenas conceitual. De qualquer modo, esses primeiros passos a caminho da obra-por-vir são ao mesmo tempo invenção, identificação, fabricação, prospecção, projecção, invocação, ativação e atualização dos vários elementos que irão finalmente compor a obra — materiais,ritmos, sons, corpos, temas, conceitos, palavras, cores, passos, gestos, silêncios, gente, gestos, lugares… Essas primeiras tentativas, esses primeiros ensaios (tal como todos os outros que se seguem), são também e imediatamente e sempre um re-alinhamento da obra-por-vir; e,
consequentemente, do próprio plano de composição/dramaturgia. Re-alinhamento levando a outras invenções, invocações e ajustes do e no plano de composição na medida em que a obra vai sendo atualizada. (atualização = concretização do virtual + redefinição do virtual por via do arremesso de concretos para o vago da invenção necessária).
c) O plano de composição não é estático, mas elástico, e se modifica pela sua própria ativação sem, no entanto, deixar nunca de ser imanente àquilo que quer vir-a-ser: a obra-por-vir. Cada novo obrar e cada novo des-obrar do que já foi feito e do que está sendo feito e do que se quer que seja feito, são tantas re-concretizações do virtual da obra ou do seu por-vir ainda não atualizado.
d) A obra se cumpre algures a meio caminho entre intenções autorais mais ou menos claras, mais ou menos conscientes e seu plano por-vir. Intenções autorais que têm sempre múltiplas origens (“coreógrafo,” “bailarinos,” “colaboradores”) todas agenciando outras forças-vontades criadoras no plano de composição. Esse plano é então populado por distribuições heterogêneas, direcionadas pelo vetor de consistência chamado “autor,” ou coreógrafo, e pelo vetor de concretização da nébula virtual chamado corporificação. Nesse caminhar (quem tem sempre mais que um sentido) coisas interferem. As tais das pedras no meio do caminho: rabanada de vento, queda inadvertida, surgimento de algo inesperado que é perfeitamente adequado ao plano, que faz o plano se adequar a si mesmo: uma ideia ou gesto ou fala que não se sabe de onde veio, mas que, por vir, faz o plano (e a composição) acontecer. Agentes a-conscientes cocriadores do e no plano de composição. Por via da coisa que faz acontecer o acontecimento que aumenta a potência da obra, o plano de composição enquanto plano de dramaturgia se revela como necessariamente aberto ao que já está ali, o ali da coisa que também invoca/produz a obra-por-vir. A coisa nomeia todos os inesperados despegados que se agregam ao que ainda está por-vir: âncoras do concreto. Repetindo: a coisa sempre interfere de modo a que o plano de composição permaneça sempre um plano aberto ao que já está ali, e não apenas ao que está por-vir.
Ou seja:
e) dramaturgia: plano dinâmico, criativo, rigoroso de invocação e de escuta da obra porvir e de suas forças desejantes de atualização; plano de composição aberto, inventado mas também invocado pelas múltiplas forças-vontades autorais que se agenciam no plano, bem como pelas forças agregantes/perturbantes/dispersantes da coisa, que sempre criam inesperadas singularidades, ou eventos, no plano. (A coisa, ou a sua capacidade de interferir, é o anti-plano fundamental que faz com que o plano seja eventualmente bem sucedido).
Ou seja:
e) dramaturgia: zona espumante onde atuais e virtuais zig-zagueiam, plano povoado por feixes de singularidades, entrelaçamento multi-direcional consistente com os elementos heterogêneos que tecem o plano de composição, e que se vai organizando de acordo com uma força inventiva que é sempre e também uma adequação ao modo expressivo do gênero que invoca/inventa/ atualiza a obra por vir (gênero = singularidade ou zona de afetação chamada “dança”, ou “teatro”, ou “cinema”, ou “ópera” ou “performance,” etc)."
André Lepecki
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